Jornalista, pesquisador, escritor e produtor musical

O emocionante show “Ruído branco”, de Ana Carolina, tem roteiro da cantora em parceria com Rodrigo Faour

9 / 100

O novo show de Ana Carolina é diferente de tudo o que se poderia esperar de um “show de Ana Carolina”. Ao invés de se divertir com suas baladas românticas, sambas ou canções dançantes, este exige mais concentração. É para se apreciar atento e senti-lo dentro da alma. Num mundo cada vez mais histérico, maniqueísta e superficial, eis que me deparo com um espetáculo experimental, poético, interiorizado, reflexivo, profundo, em que a gente sai mexido, desnudado, querendo voltar.
Sentadinho na primeira fila do Teatro Bradesco (RJ), esqueci a amiga e me encantei com a Artista com A maiúsculo que estava diante de mim. Uma cantora colecionadora de hits que, aos 18 anos de carreira, teve a coragem de abrir mão de todo o seu repertório e criar algo totalmente novo, expondo pela primeira vez suas inquietações existenciais, motivada pelo seu livro de poemas e reflexões recém-lançado, “Ruído branco”. Pela primeira vez seu “eu” verdadeiro aparece na frente do eu-poético das tantas canções que interpretara até então.

É claro que este mergulho dentro de si não a fez deixar ser expressionista, pois ela nunca foi intérprete de medir ou regular emoções. Elas estão lá – cortantes, fulgurantes –, mas o apelo é outro. E os temas, muito mais diversificados. Com direito também a vídeos idealizados, filmados ou editados por ela. Por mais que já soubesse previamente de todo esse teor multimídia do show – pois acompanhei os ensaios – o impacto de vê-la ali desnudando seus fantasmas, fantasias, dores, amores, paranoias e anarquias acumulados pela vida dessa forma tão criativa – foi de arrepiar.

Logo no poema de abertura, “Rotatória”, declamado por Maria Bethânia, já se vê o teor existencial do show. Ana também abre o próprio livro e recita alguns outros que versam sobre sua ambiguidade sexual (“Eu e eu”), suicídio (“Andaime”) ou sobre o amor por sua companheira (“Pra ela”). Decidiu também musicar alguns que são verdadeiros mosaicos de pura arte pop comparando nosso interior com a nossa carcaça (“A pele”) e a situação caótica do planeta atual (“Qual é”). Mais adiante vamos nos deparar no telão com o ator Lázaro Ramos num poema gaiato (“Não leiam”) e a atriz Camila Morgado no emocionante “O silêncio”, a respeito de sua relação com o pai que não chegou a conhecer. Soube intercalar canções novas de sua autoria e jovens autores com o melhor da MPB e do pop nacional, em que há poética de primeira para dar e vender. Momentos líricos, momentos tensos, momentos amorosos. Nas doses certas.

Tive o prazer de ajudá-la a elaborar este roteiro que ela me deu a honra de assinarmos juntos, mas não se enganem. Ana tem o domínio total do que quer, do que busca e tem a mão forte sobre tudo o que faz. Não aceita imposições. É muito verdadeira e sabe que às vezes é preciso dar ao público não apenas o que ele quer, mas também o que ele nem sabe que quer por não ainda conhecer. Ou seja, é possível ser uma artista pop e contemporânea e disseminar poesia e reflexão, por que não?

É muito emocionante assistir a este novo show junto com seu público, normalmente super eufórico e efusivo, mas que desta vez se mostrou concentrado, respeitoso e emocionado com esta sua nova faceta. Com também é bonito observar de perto sua evolução como cantora, compositora, poeta e “cantriz” sobre o palco, e ver que apesar de ter conquistado milhares de fãs e tantos sucessos-chiclete ela não se sente confortável em apenas deitar sobre os louros da fama. Ela quer dizer algo mais, provocar os fãs, sair da zona de conforto. Isto para mim é ser um artista de verdade. Preparem-se porque o novo ruído de Ana é intenso, reverbera dentro da gente e transcende ao tempo do show.